São inúmeras as razões que impulsionam a criança para o ato de brincar, pois é inerente à sua natureza. O brincar é uma importante atividade que auxilia amplamente na formação, socialização, desenvolvendo habilidades psicomotoras, sociais, físicas, afetivas, cognitivas e emocionais. Ao brincar, as crianças expõem seus sentimentos, aprendem, constroem, exploram, pensam, sentem, reinventam e se sentem cada vez mais estimuladas a ampliar seus movimentos.
A Psicomotricidade é uma importante área que necessita ser estimulada e conhecida pela família, para que desde muito cedo possam brincar com seus filhos e direcionar as atividades juntos visando atender o desenvolvimento das habilidades de suas crianças, pois é junto com a família que tudo começa.
É especialmente junto à família que ocorrem as melhores oportunidades para que, logo nos primeiros meses de vida, aconteça essa interação tornando possível realizar várias atividades estimuladoras realizadas por quem acompanha os bebês. Principalmente por aqueles que passam a maior parte do tempo com a criança, podendo assim lançar mão desses recursos no intuito de fortalecer e estimular o físico, que interfere no mental.
No meu terceiro ano como professora na Educação Infantil – Jardim - recebi um aluno com sérios problemas de coordenação motora grossa e fina em razão da ausência de tônus muscular e pouquíssima comunicação. Precisava sempre do apoio de um adulto para o auxiliar a locomover para qualquer lugar que necessário ir, inclusive ao banheiro, a maioria dos movimentos do seu corpo eram involuntários, não conseguia nem mesmo parar de balançar a cabeça.
Não se comunicava claramente, pois seu raciocínio era muito inferior à sua idade cronológica. Solicitei a ajuda de uma funcionária para me auxiliar no cuidado com os outros alunos enquanto eu estaria conversando com a criança. Me sentei diante dele na intenção de interagir através de um diálogo e isso não foi possível, então pedi para me mostrar os olhos, o nariz..., ele continuou me olhando, não demonstrou reação, perguntei outras partes do corpo e ele parecia não compreender o que eu estava falando.
Procurei a equipe gestora e discutimos o caso, pedi permissão para convocar a família, na tentativa de entender o que houve durante a gestação e no parto, para que juntos pudéssemos encontrar meios capazes de melhorar as condições de vida da criança. Fiz a convocação dirigida aos pais, acrescentei entre parênteses (se possível, comparecer os dois), mas só compareceu o pai. Ele explicou que a esposa não poderia vir porque só ela trabalhava na família e a empresa não aceitava comprovante de reuniões escolares, e acrescentou: Sou eu quem cuida dele porque sou deficiente e ninguém me dá emprego, faço bico em minha casa, conserto carros de pessoas amigas que confiam no meu trabalho, mas o retorno é muito pouco, cuido da casa e olho meu filho. Ele não tinha o braço direito e o esquerdo era bem curto e não tinha os dedos.
Fiz uma minuciosa anamnese na tentativa de encontrar as questões possíveis que causaram a falta de tônus muscular do garoto. Ele explicou que durante o parto ocorreram várias complicações e faltou oxigênio para a criança, o que resultou naquela situação. Perguntei sobre como estava ocorrendo o acompanhamento médico do menino, ele respondeu que todas as vacinas estavam em dia, que ele quase não ficava doente, mas o levava ao pediatra nas consultas de rotina e que os médicos sempre diziam que ele estava bem, e que à medida que ele fosse crescendo iria superar as dificuldades motoras, falou também do seu próprio caso afirmando que se sentia vitorioso porque cuidava do filho, de todas as atividades da casa e ainda fazia trabalhos como mecânico.
Concordei com ele, o parabenizei pela sua adaptação e esforço para superar a deficiência, pedi para ele me relatar quais eram as atividades de locomoção que ele realizava com o filho, ele confessou que na maioria das vezes o deixava dentro do berço, por medo de que ele poderia cair e se machucar, ou então o mantinha sentado ou deitado em um tapete no quintal perto dele enquanto trabalhava.
Expliquei a ele a importância dos movimentos para a tonificação dos músculos e que a criança, quando não se locomove, vai ficando cada vez mais fraca, que quando chega na juventude não consegue se realizar e a medida em que atinge uma idade mais avançada a situação vai se complicando cada vez mais. Pedi sua autorização para trabalhar com a criança vários exercícios para fortalecimento, o orientei sobre a necessidade de deixar a criança brincar fora do berço e se locomover no espaço. Propus uma parceria com a família, sugeri que a mãe reservasse um horário todos os dias depois do trabalho para interação com ele durante 15 ou 20 minutos e relatei todas as atividades envolvendo toques, massagens, conversar com ele olhando nos olhos e ao mesmo tempo o acariciando e se possível que fizesse alguns movimentos juntos, ele e a mãe, pedi que observasse a evolução do garoto constantemente e lhe desse retorno imediato através de elogios enfocando sua evolução.
Durante os demais horários, o pai assumiria as atividades e no final de cada dia sempre conversar com a mãe junto à criança sobre o quanto seu filho já havia evoluído (sempre tecendo elogios), e acrescentei, que não iria adiantar muito eu realizar as atividades e a família em casa não desse continuidade e que o ato de mostrar para o filho sua evolução o ajudaria a enxergar o quanto o quanto se preocupam e confiam nele e sempre afirmando que sua capacidade de ir cada vez mais longe. Ficou combinado que ele voltaria a cada quinze dias para trazer o retorno e receber as novas orientações, percebi que ele aparentava muito satisfeito com nossa conversa e parecia animado e esperançoso com as propostas sugeridas.
Terminada nossa reunião o acompanhei até o portão, ele se despediu, entrou em seu carro, saiu dirigindo com muita maestria e segurança, foi então quando compreendi que ele tinha razão em se orgulhar de sua capacidade. Passados os dias conforme combinamos, o pai voltou muito feliz com a evolução do seu filho e me disse: Professora me ensina mais movimentos que possa fazer com meu garoto, quero ajudá-lo a andar equilibrado! Foi muito gratificante ver a alegria daquele pai que havia descoberto os meios de interagir com sua criança e acompanhar a evolução com tanta alegria e assim se sucedeu seus retornos para nossas trocas. Retornando à sala de aula, demos início à nossa “maratona”, a primeira atividade que realizamos foi de autoconhecimento, nos colocamos diante de um espelho grande e comecei a mostrar os contornos do rosto, pronunciando a palavra (olhos, nariz, boca, orelhas, ouvidos e assim sucessivamente), primeiro seu toque em mim, em seguida nele para que compreendesse que também tinha os mesmos sentidos que eu, trabalhamos também com figuras para reforçar o conteúdo (boca, nariz, orelha).
Esquadrinhei a minha “orelha” com a mão dele ajudada pela minha e ao mesmo tempo com a mão dele sobre a minha esquadrinhamos juntos nossas orelhas até que ele percebeu que a dele era de fato igual à minha, assim também foi feito com os olhos, boca e nariz, depois que saímos do espelho fizemos o mesmo trabalho de reconhecimento corporal com todos os alunos e encerramos com um desfile de “modas” iniciamos no pátio da escola. Nos dias que se seguiram, realizamos na sala (com o intuito de aproximar as crianças umas das outras visando a ampliação das relações sociais, envolvendo lateralidade, espacialidade, em cima e embaixo, dentro e fora, com diversos exercícios focados em sanar possíveis descompassos do desenvolvimento “psicomotor” (psico e motor), ou seja, exercícios funcionais capazes de melhorar equilíbrio físico e motor, estáticos e dinâmicos, de flexibilidade, “agilidade” e outras funções psicomotoras.
Tem a finalidade de “constituir” a infraestrutura de todas as coordenações necessárias ao desenvolvimento geral da criança, como também favorecer a memorização e o aumento do desejo do aluno para a aprendizagem em geral. Estas são atividades especializadas que decorrem de uma visão da Educação Especial, sustentada legalmente e é uma das principais condições para o sucesso da inclusão escolar dos alunos com deficiência possa se tornar eficaz. Este trabalho tem como principal objetivo o desenvolvimento da autonomia do estudante, possibilitando-lhe condições para ultrapassar as barreiras impostas pela deficiência.
Em nossa escola as salas de aula eram localizadas na parte superior do prédio e tinha dois lances de escadas, mas isto não foi um problema, ao contrário, me utilizei delas (escadas) com a finalidade de promover seu fortalecimento e diminuir as barreiras para sua locomoção. Foi subindo e descendo escadas, que trabalhei com mais eficácia o fortalecimento dos tônus musculares do aluno, tirando ele, de uma posição passiva, para a apropriação e comando do próprio corpo, trazendo-lhe segurança, destreza e motivação em participar de diversas atividades de mobilidade.
Com os trabalhos realizados no 1º e 2º bimestre, já foi possível observar o fantástico avanço do aluno, ele adquiriu muita autoconfiança, começou a subir e descer as escadas sem precisar se apoiar em alguém, utilizava apenas o corrimão, desenvolvia atividades com brinquedos de encaixe, começando com peças grandes e aos poucos fomos diminuindo o tamanho até chegar nos pininhos.
Depois do meio do ano ele já se arriscava em correr, aprendeu a identificar o local da fila da sua turma no pátio, antes da saída observava a organização de sua turma e procurava seguir os amigos de sua sala, nos horários de refeições passou a conduzir seu prato até a mesa, depois de se alimentar, ou quando não desejava mais continuar comendo, se dirigia até o lugar adequado (destinado às sobras de alimentos) e jogava os restos de comida, em seguida colocava o prato e talher no local correto, buscava e escolhia sua própria sobremesa, mas quando tinha mais de uma opção, ficava aguardando orientação, na classe, guardava seu material escolar na mochila e percebia quando havia troca de lugares.
Atendia quando era chamado, sorria quando aplaudido, demonstrava carinho pelos professores e agente escolar, sempre dando um tchau ao ir embora, gostava de abraçar. Em sala, espontaneamente pronunciou um “bom dia”, e assim sucessivamente, porque “nesta época” já estava bastante familiarizado não só com a turma, mas também com os colegas de outras turmas, demonstrando muita alegria, pois adorava visitar as outras classes, chegou a abraçar outras professoras e balbuciar que estava com “saudades”, aprendeu a interagir com o grupo, aceitou o apoio dos amigos da turma, os quais sempre se mostraram solidários para o ajudar.
Ao final do ano, já conseguia balbuciar seu nome e não precisava mais simular sons para se comunicar. Imitava a turma ao fazer batucada e cantarolava, demonstrando felicidade. Reconhecia as cores primárias, mostrando preferência pela cor azul. Relacionava as cores umas com as outras e as encaixava corretamente nos lugares indicados. Utilizava formas geométricas básicas, identificando as iguais. Montava quebra-cabeças com figuras, fazia pareamento de figuras e sombras, e realizava colagens de imagens usando a quantidade ideal de cola.
Durante o intervalo, brincava e até mesmo corria, mostrando iniciativa própria para participar das brincadeiras que mais lhe atraíam. Entrava em outras filas, buscando amigos de sala para ficar junto.
Trabalhamos no reconhecimento dos números (sequência numérica), utilizando meios naturais com materiais concretos. Desenhava sua própria mão e colocava números (de 0 a 10) nos desenhos dos dedos. Apresentava as letras do nome dentro do alfabeto, reconhecia o nome das letras móveis contidas em seu nome, e escrevia as letras de seu nome na lousa para localização das mesmas em seus crachás.
Realizava recortes de figuras em jornais e revistas com algumas das letras localizadas. Sempre utilizando figuras para incentivar a pronúncia do nome das letras e do próprio nome, aprendeu a pedir para ir ao banheiro ou ao bebedouro, sempre sob o olhar atento de um adulto.
Aprendeu a rasgar papel para fazer bolinhas, treinou a técnica de picotar papel, aprendendo a segurar e utilizar a tesoura para fazer recortes. Com essas atividades de psicomotricidade direcionadas aos objetivos propostos, a criança estava pronta para dar continuidade no grafismo, que é imprescindível para fixar as bases motoras antes de ensinar a escrita. Para esse ato, é necessário aprender a necessária ação do uso da pinça (uso dos dedos, polegar junto ao indicador).
Sem essas bases, a criança não terá condições de dominar o lápis. Caso não tenha atingido a motricidade necessária, as atividades de escrita não corresponderão às expectativas da criança, tornando-se um peso, pois não têm significado para ela.
No ano seguinte, escolhi a mesma turma para dar continuidade ao processo, aumentando o grau de dificuldades de acordo com a necessidade de cada aluno. O pai continuou voltando com o compromisso de contar os resultados e pedir novas orientações. Pedi que ele levasse o filho ao pediatra para obter um encaminhamento para natação, pois isso proporcionaria a chance de encontrar atividades na rede pública. Ele seguiu essa orientação. Foi um ano muito proveitoso, e o aluno acompanhou o ritmo do grupo sem nenhum comprometimento em seu rendimento escolar.
Nos anos que se seguiram até a 4ª série, o pai sempre dava um jeito de me trazer notícias da evolução do Cleyton. Depois, fiquei um tempo sem saber dele, mas, certa vez, quando já estava no Ensino Médio, o pai me encontrou em um grande supermercado e me acompanhou durante as compras, falando sobre as conquistas do filho.
Afirmou que ele continuava fazendo exercícios físicos, pois quando parava, voltava a tremer. Acrescentou que tudo isso lhe parecia ser um milagre. Eu respondi que foi o milagre de nossa parceria, porque sozinho, nenhum de nós seria capaz de alcançar os mesmos resultados. Mais uma vez, agradeci por sua confiança em mim e seu empenho em tudo que fizemos. Nos despedimos, ambos emocionados com tantas vitórias. Foi a última vez que o vi, mas certamente, Cleyton seguiu em frente, indo para a vida com direito à liberdade e autonomia para decidir sobre os diversos assuntos decorrentes de sua existência.