No artigo de hoje, quero compartilhar com vocês a “história” de uma criança que muito me ensinou, porque ela me mostrou duas fases opostas em um espaço de tempo relativamente curto. No início do ano, Gabriela, aluna do Jardim (Educação Infantil), frequentou normalmente a primeira semana de aula com tranquilidade. Não apresentou nenhum problema aparentemente, interagiu super bem, tanto comigo quanto com os colegas (com muita parceria e alegria).
No final daquela primeira semana, a mãe comunicou à secretaria da escola que estaria viajando em férias de trabalho com a família. Viajariam para o Paraná por um período de um mês. Passado esse tempo, quando a aluna retornou, não parecia ser a mesma criança. Demonstrou diversos sinais que muito me preocuparam e assim começou a “saga da investigação” para apurar os fatos e encontrar as possíveis causas.
A aluna apresentava muita insegurança, chorava o tempo todo, não aceitava carinho de ninguém, nem a opinião dos colegas que às vezes tentavam distrair sua atenção para outros assuntos. Quando íamos para o parque, ela parava de chorar, brincava bastante, até interagia com o grupo, porém apresentava claramente grande angústia e quando retornávamos para a sala de aula, ela voltava a chorar desesperadamente.
Na tentativa de ajudá-la, todos os dias eu lhe propunha vários acordos e firmávamos “pactos” de amizade, os quais quase sempre eram quebrados logo em seguida pelos fortes choros. Por vezes, vários colegas se irritavam porque se sentiam incomodados com o barulho de seu choro, e eu tinha que intervir pedindo a eles que tivessem calma e paciência.
Diante de tantos desafios e o uso de várias técnicas pedagógicas sem resultados, precisei recorrer a outras ferramentas voltadas à psique, pois sei da importância do uso dessas técnicas para promover o relaxamento, a atenção e concentração. Lancei mão desses recursos e isso ajudou muito ao grupo, mas para a criança em questão, não fez nenhuma diferença porque ela só pensava em chorar, não se permitia relaxar e não se concentrava nas atividades propostas. Entretanto, para ela a situação permanecia inalterada.
Ela aceitava meus abraços e às vezes se aconchegava em meu colo para chorar como se estivesse em busca de segurança. Mesmo assim, procurei observar se o problema era referente a minha pessoa. Conversei bastante com ela tentando compreender qual seria a situação, o que estava de fato acontecendo que a deixava tão “chorosa”. Cheguei até a perguntar para ela se eu estaria fazendo algo que ela não gostava, mas ela me respondeu que não, e acrescentou dizendo que queria a mãe.
Então comecei a perguntar como foi sua viagem com o papai e a mamãe. Foi então quando percebi que todas as suas colocações estavam voltadas para um forte apego com a mãe, o que sugere “cordão umbilical sem corte energético”, (muita ligação), porque demonstrava forte medo de perde-la. Quando se aproximava do horário de saída, o “pânico” aumentava, ela dizia que iriam esquecê-la na escola. Falei com a mãe sobre o fato e pedi sua ajuda. Ela acrescentou que a menina tinha muito medo quando ela iria sair para resolver algo fora de casa e que talvez isso fosse a razão. Mas o que me deixava intrigada, era o que estava causando medo sendo que antes dela viajar, ela participou super bem por uma semana, e a pergunta continuou: onde se originou e como intervir...?
Pedi ajuda para mãe e ela se dispôs a colaborar com a criança em casa e investigar de onde vinha essa situação. Até então, me parecia que a criança estava com medo de crescer, mas a questão principal era: por quê? Todos os dias quando a mãe vinha buscar a filha na escola, nós conversávamos sobre o rendimento dela, como ela estava se esforçando para acompanhar o grupo. Com esses incentivos, ela começou timidamente a participar das atividades propostas, porém essa situação perdurou até o início do mês de junho, quando o pai viajou a serviço, a mãe percebeu que a filha não sentiu nenhuma falta do dele e ainda demonstrava muita alegria com sua ausência.
Ao perceber essa postura da filha, conversou a respeito de sua atitude, a questionou sobre o seu amor pelo pai, mas ela parecia neutra ao assunto, não demonstrou nenhum sentimento (nem positivo, nem negativo) e ainda afirmou seguramente que queria voltar para a barriga da mãe, o que a deixou desesperada e imediatamente procurou a escola para pedir ajuda.
Fizemos uma reunião junto à direção, quando a mãe nos contou que a filha tinha dificuldades em acordar para vir à escola e levantou a hipótese de que poderia ser essa a questão. Expliquei que na primeira semana ela havia participado com muita alegria e parceria com o grupo e que tudo começou após a viagem da família. Acrescentei que o desejo de voltar ao útero quase sempre é uma fuga de determinado problema e pode estar relacionado ao fato de que a criança tem medo de crescer.
Deixei claro o meu desejo em ajudá-la a superar as dificuldades, mas a deixei muito à vontade sobre a possibilidade da troca de horário. A diretora deu um encaminhamento para atendimento psicológico e ela imediatamente contratou uma psicóloga para acompanhá-la.
Ao chegar em casa, a mãe disse para filha que iria mudar seu horário em razão de sua dificuldade em acordar cedo. Sua reação foi imediata, ela respondeu para a mãe: gosto muito da minha professora, não quero outra, vou acordar cedo, e de fato, no dia seguinte acordou antes mesmo do horário habitual sem precisar da ajuda de ninguém.
Na primeira consulta, a psicóloga constatou que a menina estava com o horário biológico desregulado, orientou a mãe para equilibrar e aos poucos criar uma rotina, especialmente do sono, e sugeriu que fizesse isso também nas férias do recesso de julho e assim ela o fez. No semestre seguinte, ela parou de chorar, mas demonstrava tristeza, principalmente em assuntos que faziam referência ao pai, foi aí que entendi a possibilidade de, onde, e quando isso começou.
De acordo com minhas observações, os fatos sugeriam que durante a viagem a criança compartilhou com os pais os mesmos ambientes por 24 horas durante um mês e possivelmente, presenciou algumas situações de carícias entre o casal, ou até mesmo algum momento de intimidade. Ela dormia em uma cama separada, porém no mesmo quarto, o que poderia ter despertado algum sentimento de ciúmes e daí nasceu o medo de perder a mãe para o pai, sugerindo então a possível razão de sua tranquilidade com a ausência do pai, o que justifica a razão do desejo de retornar ao útero.
Apurados esses fatos, mandei um bilhete para a psicóloga pedindo permissão para realizar técnicas de ressignificação de traumas do inconsciente para superação dos medos, através de viagens imaginárias, tomando por base os contos de fadas, e as técnicas morenonas (Moreno), porém criando e adaptando nossas próprias histórias de acordo com as necessidades apresentadas.
Ela achou a proposta interessante e me autorizou a realizar as atividades, a partir de então todos os dias passei a trabalhar com dramatização. Fazíamos brincadeiras nas quais os alunos escolhiam seus papéis e aqueles que não pretendiam atuar, ficavam na plateia. Todos os assuntos utilizados tinham objetivos que pretendiam ressignificar possíveis traumas, mas especialmente os que estivessem ligados às relações de convívio familiar.
Utilizei várias estratégias da dramaturgia trazendo situações que os auxiliassem a crescer com segurança, autonomia e liberdade e assim a aluna logo foi se adaptando, parou de chorar, passou a realizar com alegria todas as atividades propostas sem dificuldades, envolveu-se socialmente com o grupo compartilhando muito bem com jogos e brincadeiras, dramatizações e outros e dessa forma pôde seguir para a vida com segurança e tranquilidade para enfrentar os novos desafios.
Essa foi mais uma história retirada de um dos meus relatórios que porventura eu havia guardado.
PARA LER MAIS ARTIGOS COMO ESTE, ACESSE: Coluna de Maria Lita Cardozo.
Texto escrito por: Prof. Maria Lita da Silva Cardozo - Psicopedagoga e Psicoterapeuta